O importante é competir. Será?
Tem gente que compete até por lugar na fila do banco. Precisamos de tudo isso mesmo?
(esse não nasceu pra ser o texto de "volta" da newsletter, mas o tema esquentou e eu precisei escrever)
Planeta Terra, 2023. Todos os dias, os jornais nos brindam com notícias que provam que a humanidade falhou. Violência, corrupção, injustiça, absurdos a fio povoam não só o imaginário popular, mas o dia a dia das pessoas ao nosso redor e, às vezes, o nosso também. Não foram poucos os dias em que eu escolhi ignorar o noticiário, especialmente nos últimos quatro anos e, principalmente, depois daquele discurso do "histórico de atleta".
A verdade é que a verdade dói. Por isso, não é raro a gente querer se esconder dela. Uma maneira de tentar escapar é encontrar uma realidade paralela e buscar um refúgio pra outras ideias, outro assunto, outro rolê. E, não, esse não é um texto sobre multiverso (ou metaverso) e sobre esse escapismo virtual, mas sobre uma rota de fuga para algo bastante real. Tão real que desperta paixões, tatua peles, faz rir, chorar, emociona e faz perder o controle. Um tal de futebol: o esporte bretão, pra gente aqui e cá entre nós, que é mais do que brasileiro. Única nação pentacampeã do mundo, terra do maior jogador de todos os tempos, de tantos outros notáveis e ídolos em escala mundial.
Ser a terra "não-mãe, mas muito próxima disso" do futebol tem um preço altíssimo. Uma cobrança que vem desde o momento em que a gente nasce. O primeiro body de time, a primeira foto vestindo, os enfeites do quarto e por aí vai. "Vai ser corintiano!", diz um, enquanto outro diz "lógico que não, ele já é palmeirense". O fato do pai ser santista ou nem gostar de futebol, pouco importa. A criança vai ganhar lá suas primeiras vestes futebolísticas antes mesmo de saber o que é uma bola, ou mesmo de conseguir chutar uma.
Aqui em casa, os primeiros anos têm sido uma festa. Os gêmeos nasceram em agosto de 2017 e, se você está antenado esportivamente, sabe que meu time, o São Paulo, não anda bem das pernas já faz um tempinho. Ainda assim, fiz o meu papel esperado pela sociedade e comprei roupinhas tricolores para os gêmeos logo nos primeiros dias de vida. Também os levei no Morumbi pra ver um embate tricolor contra o Fluminense, que terminou em 2x2, em 2022.
A Sofia, a famosa puxa-saco do pai, desde sempre, se diz sãopaulina. Nunca mudou de opinião e nunca respondeu nada diferente disso. Ela não gosta muito de assistir futebol - embora tenha amado a experiência no estádio - e nem de jogar, o que tá tudo bem. O Joaquim, por outro lado, já se disse sãopaulino, corintiano, palmeirense e botafoguense (alô, Luccas Neto). Gostava de chutar bola e não ligava praticamente nada pra assistir aos jogos na televisão. No estádio, inclusive, curtiu menos do que a Sofia. Isso tudo até a tal Copa do Mundo.
Obviamente não fomos pro Catar, mas fizemos o pacote completo daquilo que deu pra fazer: álbum de figurinhas, jogos do Brasil em família e entre amigos, camisetas do Brasil pra todo mundo e bola no pé. O resultado não poderia ser outro. Neymar, Richarlison, Raphinha e Vini Jr. viraram os ídolos aqui em casa. Até cortezinho na lateral da sobrancelha rolou. Só faltou nevar no cabelo do Joca. De tanto chutar bola nas paredes da garagem, logo vieram a chuteira e a matrícula na escolinha de futebol do Boca Juniors. Então, começaram a vir os gols e a minha reação foi "caramba, ele joga muito".
Além dos brasileiros, caras como Mbappé, Cristiano Ronaldo e Messi, que figuraram nos jogos da copa, começaram a aparecer nas brincadeiras e nas comemorações (a do CR7, a mais frequente entre os meninos do Boca). Difícil foi entender que todos esses caras têm um time além de suas seleções - o Real Madrid, o PSG, o Barcelona e por aí vai. No fim das contas, são os jogos que mais acabamos assistindo por aqui, por conta do horário que passam.
Agora, com as temporadas europeias em seu fim e a Copa do Mundo já distante há alguns meses, nos sobra o futebol brasileiro mesmo. O Joca tem uma camiseta do São Paulo, uma do Palmeiras e uma do Corinthians. Tudo isto posto, pra que time ele torce? Depende. No domingo de dia das mães, inclusive, ele usou as três, conforme o lugar onde estava. Na casa da família palmeirense, estava de verde. Na família corintiana, com a camisa velha da Batavo que meu irmão deu. Comigo, vestiu o manto sagrado que compramos na porta do Morumbi quando fomos assistir o Tricolor in loco. No entanto, ele vem se dizendo corintiano, por conta de um dos melhores amigos dele no futebol e do safado do meu irmão.
Rebobinando a fita alguns dias pra trás, o Joca quis ir para uma festinha de aniversário vestindo a tal camiseta do Corinthians. Como estava frio, botou uma blusa por cima e foi. Chegou na festa que só tinha adultos da família do(a) aniversariante, começou a brincar e, quando tirou a blusa, alguns destes seres altamente sensatos começaram a falar que a camiseta dele era feia. Uma coisa é uma brincadeira entre adultos e outra é um grupo de adultos falar pra cima de uma criança de cinco anos de idade, que já está na idade de ter suas inseguranças, que ele tá usando uma roupa feia.
O Joaquim e a Sofia, aliás, estão aprendendo na escola algo que a nossa geração não aprendeu: o que é bullying, como lidar com isso e porquê não praticar. No nosso tempo, em que "a gente era raiz, não existia mimimi e o mundo não era tão chato", a gente aprendia simplesmente vivendo. E carregava os traumas dali pra frente, sem que o mundo sequer soubesse. É essa mesma geração nossa que tem a capacidade de zoar uma criança inocente, que mal sabe o que é o mundo, quanto mais a rivalidade estúpida que o esporte nos oferece em muitos casos.
Também é essa geração que, em pleno 2023, vai pro estádio e chama o rival de bicha, de viado. De macaco, como foi chamado o Vinícius Júnior tantas vezes nesta temporada jogando nos campos dos rivais do Real Madrid na Espanha. Foram 10 as denúncias de racismo apenas nesta temporada da liga e os casos foram todos arquivados e "nunca julgados como delitos de ódio", pois foram posicionados pela justiça do país em um "contexto de rivalidade extrema" - ou seja, a famosa passada de pano. Fora isso, dentro de campo, o cara é o jogador que mais sofre faltas nas sete maiores ligas do futebol europeu (Espanha, Inglaterra, Alemanha, Itália, França, Portugal e Holanda), segundo levantamento do comentarista (espanhol, inclusive) Alexis Misterchip.
Em Valencia, foi a gota d'água. O Real Madrid enfrentava um jogo difícil contra o time da casa lutando pra não ser rebaixado e em uma tarde inspirada do goleiro adversário. Perdiam por 1x0, quando já nos acréscimos do segundo tempo, Vini foi provocado pela torcida e começou a confusão dentro de campo. Rapidamente, o brasileiro foi "contido" pelos jogadores, segurado com uma gravata dada por um jogador adversário. O VAR analisou o lance, viu que, no meio do empurra-empurra, sobrou a mão de Vini em um jogador do Valencia e comunicou ao juizão do jogo, que prontamente expulsou o jogador de campo.
Pronto, a culpa foi da vítima. De novo.
Se um dos melhores jogadores do mundo na atualidade sofre tantas ofensas assim e é tido por muitos como culpado, que chances têm os que não estão onde o Vini está hoje, no patamar dos maiores, mais ricos, longe do futebol, de moradores de rua a trabalhadores assalariados? Não é fácil.1
E se o importante é competir, como dizia minha mãe quando eu era criança, até onde vai essa competitividade? Hoje em dia, essa frase ganha um significado novo. No trabalho, vira a puxada de tapete no colega. No campo, a ofensa ao adversário. Na vida, o insulto barato, o bullying. Na política, a anti-vacinação. No Brasil, na Espanha, nas festinhas de criança ou no estádio de futebol, muda o impropério, muda a classificação da ofensa, mas não muda a mentalidade de fazer errado e de que, claro, agora o mundo está chato.
Em pleno 2023, não tem como se esconder, nem se omitir. Ou a gente (finalmente) aprende com e/ou educa as próximas gerações, ou a bola de neve só vai aumentar. No campo, no trabalho, na política e na vida, estamos todos não no Real Madrid, no Corinthians, na área X da empresa ou na área Y. Como disse o brilhante Marcos Piangers em uma palestra linda que tive a oportunidade de ver ele dar, estamos todos no time humano. Só que esse time está perdendo pra si mesmo, por enquanto, de goleada. E, enquanto a gente não perceber que o time no fim das contas é um só, a verdade vai continuar doendo. E muito.
(sobe o som em "Um Só", do Gabriel, O Pensador agora, DJ!)
Beijos de luz e até a próxima,
Luigi"
O episódio do podcast “O Assunto”, da Globo, discutiu muito bem, com muita profundidade e emoção esse absurdo todo. Recomendo demais! Link tá aqui.