Lições da solidão e do silêncio
De ser demitido a limpar a calha de casa, tudo pode ensinar alguma coisa pra gente, ou não
Não tem bullshit aqui e nem fanfic de LinkedIn. Mais do que isso, não tem analogia de “limpar a calha” com mundo corporativo, não. Dá o play aqui na playlist S&S e boa leitura.
Contexto histórico
12 de março: meu aniversário. Nem todo mundo gosta de comemorar, fazer festa, apagar velinhas ou mesmo de comer bolo - que deus perdoe as pessoas ruins, já diria Adriano Imperador, mas eu gosto de tudo isso aí. Sem exageros, eu só gosto. É legal receber presentes, ler mensagens de carinho, comer bolo e abraçar as pessoas. Quer dizer, pelo que eu me lembro, realmente era maneiro. Mas peraí, já vou chegar lá.
12 de junho de 2019: dia de tensão na firma. As línguas (más e boas) diziam que o facão ia passar e aquele era o dia. O pessoal estava correto. Há alguns anos antes, havia ficado no quase (conseguimos fazer um remanejamento interno), mas agora era real. Eu ia ter que fazer dois desligamentos no meu time e assim foi. Como fiquei sabendo no dia anterior, já fui para o trabalho de luto, com minha camiseta preta do Johnny Cash1. Doeu, e muito. Foram diversos desligamentos na empresa naquele dia e uma sensação de impotência. Uma das meninas do meu time tinha saído de um emprego havia 15 dias e foi desligada.
2 de março de 2020: depois de um 2019 desafiador em termos de resultado financeiro, mesmo com a reestruturação, as línguas diziam que o facão estava novamente a caminho. Neste dia, chego na empresa e recebo a surpresa: teria que fazer mais um desligamento e seria ali, naquele momento. "Quem sabe, faz ao vivo", diz Fausto Silva. E eu tive que fazer, sem a menor chance de escolha. O que fazíamos em cinco pessoas, estávamos fazendo em três e teríamos que fazer em dois.
9 de março de 2020: no meio de uma reunião matinal, toca meu celular. Me chamam pruma outra reunião na sala ao lado. Lá, a chefe e a moça do RH. E o "reestruturado" da vez sou eu. Dou um abraço na galera, me despeço, conto pra família e chego em casa com a minha caixa de pertences, ainda sem entender muito bem o que estava acontecendo. Aciono meus contatos, disparo e-mails para uma lista grande de pessoas e até recebo algumas ligações que me recolocariam no mercado na mesma semana.
Repare o futuro do pretérito ali em cima: recolocariam.
11 de março de 2020: a OMS declara a pandemia de coronavírus no mundo. Os estabelecimentos começam a fechar as portas, os escritórios, também. O trabalho torna-se forçadamente remoto e a busca por um novo emprego, também. Tudo que estava previsto acontecer até ali é congelado sem a menor certeza de quando seria retomado. Desde investimentos das marcas, contratações, enfim, tudo. Entramos no famoso período de isolamento social, sem saber direito até quando ele duraria2.
12 de março de 2020: pra quem estava acostumado a passar o dia inteiro no escritório e não ficava sem emprego desde a virada do ano de 2011 para 2012, foi um choque grande. Já fazia alguns anos que não tinha uma verdadeira festa de aniversário, mas não ter nada estando em casa era diferente, pra dizer o mínimo. Eu não estava empregado, mas pelo menos teve bolo.
Visitando o subsolo
A partir daí, começou uma jornada diferente pro mundo inteiro. Fomos forçados a viver uma transformação digital de dentro das nossas casas. Trabalhar de home office (ou procurar emprego) com as crianças em casa, sem estrutura nenhuma. Claro, isso pra quem teve essa possibilidade - os trabalhadores dos famosos serviços essenciais não tiveram. Com isso, a minha busca por emprego, que poderia ter durado menos de oito horas, durou três meses, o que certamente deve ser pouco em relação à média da população brasileira.
O reinício da minha carreira foi, claro, no modo remoto. Era junho de 2020, não suspeitávamos sobre final de pandemia e não fazíamos ideia que viria uma tal segunda onda. Entre idas e vindas, foi um ano de trabalho "híbrido" - ora em casa, ora no escritório. Tive um aprendizado enorme e um cansaço mental maior ainda, algo que nunca tinha vivido (e que vai ser tema pra outro texto) e espero não viver novamente.
Após esse "um ano" híbrido, entrei em outra fase nova: a 100% remota. Um jeito de trabalhar diferente, inovador e que, se aplicado corretamente, funciona bem pro colaborador e pra empresa. Economiza-se em custo, tempo e muito mais. Por outro lado, perde-se em relacionamento e no ligar e desligar3 do trabalho, que acaba por acontecer no trajeto de ida e volta pro trabalho presencial, queira ou não.
Tive muitos ganhos: um horário altamente flexível, uma rotina diferente de todos à minha volta e o aprendizado de uma metodologia de trabalho que pode, sim, ser aplicada em empresas grandes, sem dúvidas. Te convido, aliás, a dar uma olhada no conteúdo da galera do Officeless, que, dentre outras coisas, ministra aulas grátis todas às terças-feiras para falar sobre cultura de trabalho remoto e híbrido.
Tive um grande desafio: lidar comigo mesmo durante a maior parte do dia. Não me considero uma pessoa difícil de se conviver (pelo contrário, aliás), mas estar consigo durante o dia, sozinho, não é/não foi fácil.
Além de trabalhar, eu, por estar em casa, tinha mais tempo de fazer coisas que, até dois meses atrás, era minha esposa quem fazia, justamente por estar em casa. Lavar a louça, lavar a roupa, passar aspirador de pó, arrumar a bagunça das crianças e por aí vai. Nos intervalos das atividades, eu fatalmente estaria fazendo algo da casa. Só me faltava uma coisa, o meu maior Nemesis, cozinhar.
Quem me conhece já há um tempo, sabe da minha dificuldade (pra não dizer completa inaptidão e incompetência) de enfrentar o fogão. Até já li instruções atrás de uma embalagem de miojo pra não errar na "receita" e, ainda assim, enchi a panela de água até a boca pra fazer um. Já coloquei pizza pra esquentar num forno elétrico sem uma assadeira. E não muito mais que isso, justamente por não ter o costume de me aventurar. Nossa sociedade machista criou milhões de outros meninos assim, sem nem chegar perto das panelas e do fogo. E ainda bem que isso está mudando.
A questão é que, até algumas semanas atrás, o meu livro de receitas tinha apenas duas páginas: miojo (que eu aprendi a fazer depois de praticar bastante enquanto morava em Assis) e coisas congeladas de forno (hambúrguer, nuggets, tirinhas de frango, pão de queijo etc e tal). Ou seja, o equivalente ao nível zero, o modo tutorial da cozinha. Então, com instruções bastante precisas da minha esposa, consegui fazer arroz e carne moída decentemente. A small victory.
Naturalmente, a prática vai me levar à perfeição, enquanto a não-prática pode levar ao esquecimento4, mas a solidão me levou à tentativa. Eu provavelmente jamais teria tentado se não estivesse sozinho comigo mesmo em casa, me fazendo perguntas do tipo: "caramba, como assim você nem tenta chegar perto do fogão?". Uma tremenda falta de interesse seria a primeira resposta, mas, com o tempo, percebi que a insegurança e o medo de dar errado me impediram mais.
Falando em voz alta
Fui forçado a estar comigo mesmo e, por conta disso, convidado a explorar aspectos dessa "convivência" que eu sequer fazia ideia da existência. Esse contato mais próximo com a minha sombra5 fez com que eu questionasse minha capacidade profissional, meu papel dentro de casa, meu valor para a família e como eu mesmo me enxergava em meio a tudo.
Já fiz alguns treinamentos corporativos e aulas no MBA com o tema "autoconhecimento". O ponto é que nessas ocasiões, somos convidados a pensar, enquanto num momento de solidão, somos praticamente forçados a tal. E, se alguém um dia inventou o ditado "mente vazia, oficina do diabo", esse alguém provavelmente estava sozinho tentando (não) pensar em algo.
Ideias mil, ou mil não-ideias, deram lugar, quase que de forma natural, a mil afazeres que eu fui inventando. Maneiras de ocupar a minha cabeça que o meu cérebro encontrou pra manter o corpo fazendo alguma atividade em vez de pensar besteira ou ficar com tantos questionamentos a troco de absolutamente nada.
Inventei de limpar a calha daqui de casa, entupida por causa de muito vento e chuva. Arrancar a terra e as folhas com as mãos e usar a mangueira pra tentar tirar o restante com água corrente não foi suficiente. Então, fui à casa de materiais de construção do bairro e falei pro vendedor: "preciso desentupir uma calha", tem alguma coisa pra isso? - repare a minha não-intimidade com o tema. "Tem sim, você precisa de um tufão", disse ele. O tufão que não é o Murilo Benício é um arame de 5m, 7m ou 10m, especialmente para desentupir calhas, ralos e afins. Optei pelo de 5m e tive sucesso absoluto: missão cumprida, e comprida, até porque demorei horas no serviço todo.
Depois de ter cozinhado e limpado a calha, fiz mais uma coisa pela primeira vez: tive uma sessão de terapia. Era algo que eu já queria e sabia que precisava, pelo menos, havia quase um ano. No entanto, a falta de grana, aliada à falta de tempo, fizeram com que eu cada vez mais adiasse esse início que, por estarmos ainda neste momento diferente no mundo, foi realizado online.
Falar em voz alta por praticamente uma hora sobre tudo aquilo que eu estava encarando como problemas (boa parte do que está escrito neste texto e uma outra boa parte que você vai ver em outro texto, logo logo) foi um alívio. Embora tenha sido, até agora, a única sessão, já foi importante. O sentimento de leveza me consumiu logo depois de terminar a chamada com a psicóloga e eu logo percebi que mais e mais encontros serão bem-vindos - e necessários - pra manter a cabeça em ordem, mesmo com um novo emprego recém-iniciado, novamente em regime híbrido.
Eu só percebi o tamanho dessa necessidade de falar em voz alta quando fiquei em silêncio comigo mesmo, por dias. E falar com o cara no espelho não seria suficiente - até porque ele não vai identificar traços A ou B em seu comportamento, ou te guiar para caminhos X ou Y.
Faça terapia, cuide das pessoas ao seu redor, mas não esqueça de cuidar de si mesmo. Sem você, você não consegue cuidar de mais ninguém.
Beijos de luz e até a próxima,
Luigi"
Cash sempre se apresentava todo de preto e, por isso, era conhecido como o “Man in Black”. Inclusive, ele tem uma música (claro, na playlist dessa edição) que explica o porquê de ele sempre usar preto e, em 2021, ele continuaria usando preto.
Em novembro de 2021, após duas doses de vacina, parece que finalmente está acabando, de verdade. \o/
Recomendo o podcast “Liga/Desliga”, que é um Spotify Original e faz muito bem esse papel! São pequenas sessões, com 5 a 10 minutos, para ligar e desligar, no início e no fim do dia, de segunda à sexta-feira. Essa belezinha é comandada por Leonardo Hwan, que usa referências até de Naruto pra te conectar (ou desconectar) da realidade.
Estão aí as línguas estrangeiras, dizendo isso pra gente desde sempre: se você não pratica, esquece mesmo.
Te convido a saber mais sobre essa "sombra" em Memórias do Subsolo - Dostoiévski