Utopia distópica
Essa é uma metaedição de newsletter. Se você chegou até aqui, pode ser que tudo tenha dado errado (ou não).
E, a partir dessa edição, eu decidi começar com a playlist. E cá está ela. Dá o play e boa leitura!
Fuga da realidade
2045. Vivemos em um mundo cinza. As desigualdades sociais são maiores do que nunca e a população vive em lugares parecidos com favelas, mas formadas por trailers em cima de outros trailers. A realidade é tão cruel e anti-convidativa que as pessoas buscam passar cada vez menos tempo diante dela e mais tempo não diante da tela, mas em um outro universo, o Oasis.
Se eu tivesse chamado o Oasis de Meta, talvez você poderia encarar isso como uma previsão dos próximos anos. Mas, não, essa é "só" a história do livro de Ernest Cline, Ready Player One, de 2011, adaptado para os cinemas em 2018, com direção de Steven Spielberg. São diversas referências de cultura pop, games, cinema e tudo mais.
E, não, os irmãos Gallagher não têm culpa neste caso. Este Oasis é um software de realidade virtual, acessado pelos usuários com óculos especiais. Cada um cria seu próprio avatar, faz missões, frequenta diferentes "mundos", confraterniza com pessoas do mundo inteiro e gasta moedas virtuais, claro, convertidas em dinheiro de verdade. Ou seja, o Oasis é um metaverso. Segundo a Wikipedia, pra facilitar a definição, um tipo de mundo virtual que tenta replicar a realidade através de dispositivos digitais. É um espaço coletivo e virtual compartilhado, constituído pela soma de "realidade virtual", "realidade aumentada" e "Internet".
O criador do Oasis é o visionário James "Anorak" Halliday, que bate as botas e deixa no ar um concurso para definir seu sucessor como dono e comandante do "jogo". Basta que alguém cumpra três desafios propostos por ele. O ponto é que ninguém nunca consegue sequer passar do primeiro.
A cidade de Ohio, nos Estados Unidos, é a de crescimento mais rápido no mundo e é de lá que o jovem Wade Watts se conecta ao Oasis com seu avatar virtual, Parzival. Fã de Anorak, ele busca se diferenciar de todos os outros jogadores ao tentar vencer o primeiro desafio e chama atenção da corporação Innovative Online Industries (IOI), que quer controlar o metaverso (e mudar o rumo do mundo e de seus jogadores-habitantes.
Fuga do planeta Terra
Agora, o ano é aproximadamente 2700. A Terra é um lugar devastado, praticamente inabitável e desabitado. Fruto da ação do homem, a destruição faz com que a população fuja, a bordo de uma nave, para o espaço, enquanto um plano de limpeza está em prática, para que possamos voltar ao nosso planetinha outrora azul. Este plano, estimado para durar cinco anos, já dura 700.
Este roteiro apocalíptico retrata um futuro altamente distópico e, talvez você já tenha percebido, trata-se de uma mini-sinopse de Wall-e, filme da Disney de 2009. O robô é encarregado de organizar o entulho todo da Terra, enquanto a humanidade vaga pelo espaço na nave Axiom e envia outros robôs, como Eva, para verificar se o planeta já está habitável.
Quando Wall-e encontra uma mudinha de árvore e coloca dentro de Eva, a robô se fecha, para de se comunicar (como se tivesse entrado em modo de repouso) e parte de volta para a Axiom. Apaixonado, nosso herói vai junto e, lá, encontra os humanos: gordinhos, sentados, condicionados a assistirem projeções em suas próprias cadeiras, tomarem milk-shake e fazerem tudo por meio de andróides.
Todos, absolutamente todos os produtos que aparecem no filme são de uma mesma "empresa", a BnL (Buy & Large). No entanto, pelo fato de o planeta estar inabitável e muitos anos terem se passado desde a "fuga" humana da Terra, podemos afirmar que a empresa nem existe mais. Ainda assim, continua sendo a grande regente da vida da galera a bordo da Axiom.
(parênteses rápidos entre parênteses: a BnL é uma protagonista em Wall-e, mas também aparece no Pixarverso em outros filmes, como Toy Story e Carros).
A Wiki da Pixar traz a história completa da BnL, mostrando que a empresa chegou a ser líder mundial de setores como aeroespaço, agricultura, construção, bens de consumo, transporte terrestre, eletrônicos, energia, engenharia, financeiro, mídia, invenções, ciências médicas, pet care, farmacêutico, imobiliário, robótica, serviços de viagem e moinhos de água, entre outros. Tudo isso antes de ruir e abandonar o planeta para uma missão maior.
Mera coincidência?
Se lá nos anos 1980/90 sonhávamos com nossos dias de Jetsons, drones tripulados estão mais perto do que imaginamos. Robôs em casa, também - sutil, inclusive, a Amazon em não batizar seu novo robô-assistente caseiro de Rosie, mas de Astro. Ainda no mundos andróides, a Boston Dynamics encanta e assusta a cada vídeo que publica mostrando seus novos avanços. Mais ameaçadora ainda, a Ghost Robotics colocou uma arma em um de seus protótipos1, mas apenas com a intenção de "navegar por áreas que não são desejáveis para seres humanos e veículos".
Mais recentemente, Mark Zuckerberg, em meio a escândalos com a marca Facebook, provavelmente antecipa algo já planejado e anuncia a mudança de "nome" do grupo. Assim como a "Google Corp" passou a chamar-se Alphabet, o "Facebook Group" agora chama-se Meta. Claro, o brasileiro não perdoou o nome2, mas a questão é que Mark conseguiu o que queria: virou os holofotes dos Facebook Papers para seu novo caminho corporativo, o metaverso.
Em um post recente no perfil da Meta no Instagram, algumas definições mais profundas apareceram. Segundo o Facebook (ou Meta, sei lá, rs), o ambiente será colaborativo:
Este futuro será feito por todos nós.
Abrimos o Connect deste ano com um filme que compartilha a nossa visão de um futuro feito por todos nós.
O metaverso é a próxima evolução da conexão social. É um projeto coletivo, que será criado por pessoas no mundo inteiro, e será aberto para todos. Você poderá socializar, aprender, colaborar e jogar de maneiras que vão além do que é possível hoje.
Se você se imagina mais próximo de familiares que moram longe, ou dançando com seus amigos, onde quer que eles estejam, compartilhe conosco sua visão de futuro nos comentários.
A questão é que, agora, o Facebook não é mais "Facebook-first", mas "Meta-first" e, conforme vi em uma discussão muito interessante trazida pela Bits to Brands, o Markinho da galera tá vendendo os próximos 10 anos de futuro sem levar muito em conta o que fez nos últimos 10.
Então, existem tantas diferenças assim entre realidade e ficção?
Empresas gigantes, como Amazon, Virgin e Tesla brigam pra ver quem chega primeiro no espaço. Os foguetes ainda não se parecem com a Axiom de Wall-e, mas a humanidade já busca alternativas à vida na Terra. A Amazônia queima, o planeta pede socorro em meio a mudanças climáticas sem sentido, enquanto a nossa saúde, física e mental, ainda sofre com as consequências da pandemia e do descaso humano.
O cientista tcheco Vaclav Smil, cheio de números na cabeça e parecendo um velho ranzinza em algumas frases, disse em entrevista ao El País que haverá escassez de água e alimentos em cinco anos. Ele defende que, sim, crescimento é importante, mas de forma a melhorar a equidade e, ainda assim, uma sociedade perfeitamente igualitária é, vejam só, utópica.
Ainda assim, o Meta tem essa "ambição" de evoluir nossa conexão social. Não sei a você, mas me soa um pouco familiar em relação ao que um certo Facebook apresenta ao mundo já há alguns anos. E, novamente vejam só, ainda não conseguiu. Principalmente no cenário atual de pandemia, essa hiperconectividade tornou-se mais excessiva e invasiva do que nunca, de maneira a questionarmos o porquê de estarmos tanto tempo online ou mesmo se vale a pena - Smil, você deve ter adivinhado, não possui contas em redes sociais.
Nosso cenário "utópico" que se revela um pouco mais distópico a cada dia, por mais que a vacinação contra o Covid-19 esteja bastante avançada - talvez isso apenas signifique que a distopia não vai ser por conta de SARS-CoV-2. Não tenho dúvidas em meio a isso tudo se o Facebook vai se livrar de todas as acusações que tem, ou se o metaverso vai dar certo (o Second Life3 não deu) e ser o nosso Oasis.
Miramos em uma utopia, linda e maravilhosa, e ela pode ser bastante distópica, se algo der errado. Então, te pergunto: essa virada vai acontecer em 2045, em 2700 ou antes disso? E quem será a BnL da vida real?
Beijos de luz e até a próxima,
Luigi"
E apesar da referência óbvia de "Eu, Robô", me vem à cabeça Jurassic World e a brilhante ideia de transformar animaizinhos dóceis como os velociraptors em "armas de combate".
Deus perdoa, o brasileiro na internet, não. Claro que temos as melhores reações do mundo em relação às mudanças no Facebook.
O Second Life, o The Sims e até diversos MMORPGs já possibilitam/possibilitaram aos usuários "serem quem quiserem" e até a se conectarem com pessoas em escala mundial. O Facebook pode ter se inspirado em todos eles? Provavelmente sim. E onde Mark tem mais chance de fazer o negócio dar certo? Nosso mundo está mais preparado pra isso e o MetaFacebook, também. Melhor internet, melhores tecnologias, gadgets, inspirações, profissionais, dados de bilhões de usuários e penetração em muitos lares mundo afora.
Excelente texto ! Assunto complexo, profundo e intrigante. Obg por compartilhar a sua visão, Luigi.