Não sou o primeiro e nem o último a escrever sobre o flow, mas esse é um texto que eu estava ensaiando na minha cabeça há, pelo menos, uns dois ou três anos. Em tradução simples pro português, flow quer dizer fluxo e na língua falada coloquial pura e simples o "seguir o fluxo" (ou, para os Queens of the Stone Age, "go with the flow") é um deitar eternamente em berço esplêndido e deixar a vida te levar. Mas, na vida real, e pro psicólogo Mihaly Csikszentmihalyi que, ele sim, foi o primeiro a escrever sobre o flow, é bem diferente.
Além de ter o nome mais complicado que um psicólogo poderia ter, o Sr. Csikszentmihalyi também é o responsável por desvendar, descobrir (ou como quiser chamar) o conceito maravilhoso do flow. É quase que um estado de espírito e plenitude absurda. É quando você "realiza uma atividade e se sente absorvido por uma sensação de energia, prazer e foco total no que está fazendo". Basicamente, você só entra no "estado de flow" quando está feliz, confortável, concentrado. O que quer dizer que você não vai entrar no flow durante o trabalho, certo? Errado, é claro.
Mas eu vou chegar no trabalho já já.
Caso você ainda não tenha vivido, com certeza, você já teve a oportunidade de testemunhar alguém em estado de flow. No esporte, por exemplo, é bastante perceptível e fácil identificar um atleta (ou até uma equipe, compartilhando uma grande energia coletiva). No futebol, um dia inspirado de Ronaldinho na época do Barcelona era uma derrota quase que certa para o adversário. Mais do que isso, chegava a arrancar aplausos, inclusive, do maior rival.
O ano era 2005 e o jogo era Real Madrid x Barcelona, em Madrid. O resultado? Um 3x0 para o Barça com dois gols dele, fora o show. Há boatos que os defensores Michel Salgado e Sérgio Ramos ainda sonham com o brasileiro até hoje. Fora isso, a torcida do Real que estava presente naquele dia ainda o aplaudiu em pé. Ronaldinho estava voando em campo, na carreira e seria eleito o melhor jogador do planeta pelo segundo ano consecutivo ao final daquela temporada.
Dava pra ver que o camisa 10 do Barcelona estava se divertindo em campo. Sorrindo, à vontade, tentando jogadas ousadas, em uma noite mais do que inspirada. Até dá pra dizer que tudo o que Ronaldinho fosse tentar naquele dia, daria certo. Ótimo para o fã de futebol: venceu o espetáculo (e, claro, o Barcelona).
Avancemos no tempo, para 2023. Não estamos mais na Espanha, mas no nosso Brasilzão. Mais precisamente, em Itupeva, aqui do ladinho de Jundiaí. Não estamos em um jogo de futebol, mas em uma festa junina - ou "maína", se levarmos em conta que a festa foi ainda em maio. Depois de muito comerem e brincarem, chega a vez das crianças dançarem. Aquele momento em que muitos dos pequenos, tímidos que são, cumprem tabela e estão por ali por obrigação, mesmo sem ter muita noção do que é isso.
No ano passado, o Joaquim foi desses. Estava nervoso, mas dançou lindamente, deixando papai e mamãe chorando, emocionados. Neste ano, o nervosismo nem deu as caras. Como bom filho de peixe que é, o sem-vergonha colocou a camisa xadrez-junina apenas na hora da dança e, assim que a música acabou, arremessou sua veste caipira pro alto, sobrando a mim a função de recuperá-la na grama. Em vez de estar nervoso e ameaçando não dançar, o Joca estava feliz. Fez a coreografia direitinho, sorrindo e rindo com os amigos, que também riam.
Na sequência, foi a vez da pequena. Sofia, por sua vez, estava não nervosa, mas concentrada. Era nítido no olhar de criança de cinco anos que ela tem o quanto estava comprometida naquele momento. Afinal, passou semanas ensaiando, compartilhando com a gente em casa seus avanços, mostrando a coreografia e, claro, cantando o "Xote da Alegria" o tempo todo. Aliás, triste daquele que não aprecia a poesia do Falamansa.
A apresentação foi maravilhosa. Se fosse a Dança dos Famosos, certamente o juri técnico daria mais do que os habituais 8,7 pra nossa baixinha. Se tivesse mais uma cantando e dançando, não tenho dúvidas de que ela daria conta, feliz e concentrada.
Cena semelhante aconteceu há algumas semanas atrás, também em Itupeva, mas em uma quadra de futebol society. O Joaquim treina na escolinha de futebol do Boca Juniors, aos sábados pela manhã. Em uma hora de aula, dá pra perceber quatro etapas distintas de atividades: uma mais lúdica, outra com bola, depois um jogo (ou mais, dependendo da quantidade de crianças presentes) e, por fim, uma mini-disputa de pênaltis.
Durante o "jogo", o Joca mandou ver. Tava inspirado e meteu logo dois gols. Chegou em casa e quis jogar bola de novo. Não quis descansar depois, mesmo sabendo que ia voltar pro Boca, pois tinha jogo (sem aspas) do campeonato sub-7 que o time estava disputando. Entrou em campo, fez um gol no jogo e esteve durante o tempo todo na quadra. Não descansou de manhã, não descansou em casa e não descansou durante o segundo jogo. Se tivesse mais futebol à noite, ele certamente jogaria também, feliz e concentrado.
O que o Joaquim, a Sofia e o Ronaldinho têm em comum? Independentemente de um estar entre os melhores jogadores de futebol da história e os outros dois serem meus filhos, o inconfundível estado de flow: concentração altíssima e quase que uma desconexão do mundo em volta. E isso acontece quando estamos desempenhando uma atividade que gostamos, somos bons em fazer, sentimos confiança nisso, e sai tudo quase que no "modo automático".
Pode ser que você se sinta no flow jogando videogame, desenhando, escrevendo, dando conselhos, costurando, brincando de Lego. Mas, supondo que você, que está lendo não seja um atleta profissional de eSports, desenhista, escritor, psicólogo, modelista ou designer da Lego, você também pode ter um momento de flow enquanto trabalha (sem ser nada disso que eu falei) - queira a gente ou não, o flow do Ronaldinho que exemplifiquei é durante o seu trabalho.
Claro, não é o tempo todo, das 8h da manhã até as 18h. Ninguém fica o dia inteiro no automático. Afinal, somos humanos, nos cansamos, precisamos respirar, socializar, comer e tirar os olhos (e mãos) do trabalho por um tempo durante o dia. No entanto, tem aquela (ou aquelas) atividade(s) que te faz(em) se sentir diferente. Talvez mais especial, ou só mais... confiante mesmo. Ou seja, você entra, sim, no estado de flow no trabalho - e talvez nem perceba isso.
No meu caso, eu consegui detectar que isso acontece em dois momentos específicos: quando estou planejando alguma coisa (campanha, evento, estratégia de alguma marca etc e tal) ou quando estou efetivamente apresentando, falando em público. Ou, melhor ainda, palestrando. Nem sempre foi assim, obviamente, mas também não dá pra parafrasear Chicó e dizer que "não sei, só sei que foi assim". Tá longe de ser uma receita de bolo e mais perto de ser algo mais "ah vá, é mesmo?".
Eu não gostava (ou achava que não gostava) de falar em público quando estava na escola. Os seminários que amedrontavam a maioria dos alunos, me assustavam, sim. Eu era bastante tímido, mas por algum motivo, eu me transformava quando estava frente à classe. Não tinha muito erro: era só falar aquilo que eu tinha estudado e boa, dava certo. Veio a faculdade e as situações só se repetiam. O lance é que eu comecei a perceber que talvez fosse bom naquilo. E que, na verdade, eu gostava, e muito, de falar em público.
Depois de formado, eu fui aprender, em curso maravilhoso ministrado pelo jornalista Celso Cardoso na Cásper Líbero, sobre técnicas para apresentação (especificamente para telejornalismo), mas coisas que me ensinaram muito para a vida toda. Desde como se portar em frente a uma câmera, como ler um teleprompter, improvisar quando as coisas não estão tão nos eixos assim, até como se posicionar, postar a voz e até mesmo respirar. Depois de se acostumar com a própria imagem no monitor de retorno ao ser filmado e ao som da nossa própria voz, inclusive, a vergonha e a timidez diminuem drasticamente.
Ainda fico nervoso e sempre vou ficar. Mas, uma vez começado o momento de falar, engato a segunda marcha, a terceira e por aí vai. De repente, nem percebo mais que está acontecendo. Eu sou uma pessoa que trabalha com comunicação e vive de, hmm, se comunicar. De certa forma, guiei minha carreira nessa direção, gosto de falar sobre o tema e sobre vários outros temas. Venho de uma maratona de vários dias viajando pelo Brasil para reuniões com clientes da firma, fazendo apresentações e muito relacionamento. Isso cansa - e vou falar mais sobre isso na parte dois desse texto.
E, por falar em cansaço, na sociedade (do cansaço) em que vivemos atualmente é cada vez mais difícil encontrar esse momento de hiper-concentração, no meio de tantos momentos de hiper-informação e hiper-pressão por tempo, resultados, mais entregas em menos tempo e tudo mais. Mas é isso que faz tudo valer a pena (não tanto quanto o que está fora do seu trabalho, é claro, como sua família e sua vida real). Encontrar a atividade que você domina, te faz sentir prazer, que o mundo ao seu redor precisa e que dá algo em troca de volta - na esfera profissional, de forma bem direta, esse é o seu salário.
Os japoneses chamam essa "mágica" de Ikigai. Poeticamente falando, é a razão pela qual você acorda todos os dias de manhã. Mas eu não vou entrar em detalhes e nem em papos coachísticos, porque "a busca pelo seu ikigai" seria papo pra outro texto e já tem muitos outros internet afora que falam sobre isso. Quem sabe algum dia eu integre esse número?
Por enquanto, meu objetivo era só fazer parte dos que já escreveram sobre o flow - e olha onde a gente chegou. Eu só quero é ser feliz e seguir o fluxo, tipo o Ronaldinho, o Joca ou a Sofia, embora nem sempre seja tão fácil assim. Conseguir atingir esse estado de flow pode ter um custo, que merece um post só dele. Semana que vem tem mais.
Beijos de luz e até a parte dois,
Luigi"