Ao mestre com carinho e atrasinho
Celebrar o Dia dos Professores é o mínimo depois de tantos pedidos de meio ponto pra fechar a nota
Vamos falar sobre experiência de marca. Mais precisamente, sobre, talvez, uma das primeiras que tive na vida.
Que cara metódico
Vários professores marcam as vidas dos alunos e alguns têm a capacidade de praticamente tatuarem lições, aulas, musiquinhas pra lembrar fórmulas e outras coisas do gênero em nossos corações.
Uma das matérias que chamava mais a atenção de todos ao aparecer na grade de aulas da FITO em Osasco era "Desenho Geométrico". A gente chegava da quarta série, querendo iniciar nossa adolescência, todo cheio de si, e aparecia uma aula de desenho na grade? Pior, era geométrico, pra tornar o que era legal, difícil.
O professor era um cara chamado Eduardo Palumbo Porciúncula, conhecido por todos como Porci. A aula não era na sala de aula comum, mas em uma com o dobro do tamanho, com mesas enormes e inclinadas em 45º. A lista de materiais previa alguns instrumentos de trabalho que, ano a ano, nos deixavam mais curiosos, como compasso, transferidor, régua, esquadros, curva francesa, lápis de cor, folha canson, folhas sulfite, canetinha preta e até uma flanela.
Flanela? Não pra limpar nada, mas, sim, pra ficar estendida sobre a mesa, no canto oposto da sua mão boa, com todos os outros instrumentos em cima. Sem ela, tudo escorregava com a inclinação da mesa. A folha canson e a canetinha preta serviam para a primeira realização da aula: a folha preguiçosa.
Na aula do Porci, não usávamos caderno. As atividades eram feitas em folhas sulfite, arquivadas numa pasta catálogo e a preguiçosa servia justamente pra suprir essa necessidade de linhas que as folhas não atendiam. "Transformamos" a folha de canson numa folha pautada, seguindo as instruções do professor, com linhas de 1 cm, e um rodapé padronizado, que continha o nosso nome e deveria ser reproduzido nas atividades das aulas. Usamos a canetinha preta para reforçar todas as linhas, uma a uma, porque a preguiçosa ficava por baixo da folha sulfite, pra conseguirmos escrever reto. Segundo o professor, folhas bem cuidadas durariam da 5ª até a 8ª série e, pasme, isso realmente acontecia - não me lembro se eu fui um desses sortudos.
Também nessa primeira ocasião da aula, tínhamos a responsabilidade de decidir como escreveríamos nas atividades do ano inteiro. A letra não podia ser "de mão" - e, foi aí que o Porci ensinou pra gente que a "letra de mão" chamava-se, na verdade, letra cursiva. A escolha deveria ser entre: letras de forma, maiúsculas ou minúsculas, regulares ou em "itálico". Essa decisão só poderia ser revisitada a cada novo início de ano letivo.
From zero to a hero
O primeiro trabalho para entrega (que ainda não valia nota) era muito simples e se repetia no início de todos os anos. Precisávamos desenhar uma casa, uma árvore, uma cerca e um sol. E só. Claro, todos éramos livres pra criar em cima do pedido, "temperar" melhor a nossa arte e a tendência era que, na oitava série, estaríamos evoluídos o suficiente pra entregar algo mais elaborado e bonito.
A evolução dava-se por todos os ensinamentos da matéria: da mediatriz aos triângulos retângulos, da bissetriz dos ângulos à construção de polígonos regulares. Tudo isso usando os equipamentos que tínhamos direito e estavam lá, prontinhos em cima da flanela, ou a ponto de serem construídos com chapas de acetato, como o trio de trisseccionadores1 que fizemos.
Em uma icônica atividade sobre construção de polígonos, por exemplo, reproduzimos uma torre do castelo do Conde Drácula, na Transilvânia, enquanto o professor nos contava um pouco das lendas, em uma aula divertida e aterrorizante ao mesmo tempo.
Era inimaginável (re)criar aquela construção, com auxílio de um pouco de matemática (que, fato, poucos perceberam que estava sendo usada) e muito de storytelling. O desenho era quase consequência da aula muito bem ministrada e como a rádio peão rolava solta em tempos quando não existia internet, os comentários sobre as aulas também rolavam. E, do Porci, ninguém tinha o que falar de mal. Lembro até da galera que teve essa aula dias antes da minha turma comentando “ele ensinou a gente a fazer o castelo do Drácula e contou a história dele!“.
O número de ouro
Mas o trabalho mais marcante que fizemos, provavelmente na oitava série, foi na aula em que aprendemos sobre a secção áurea. Antes de explicar do que se tratava aquilo, ele nos deu, de brinde, como fazia com frequência, um conhecimento a mais. Esse é o tipo de coisa que é bem mais fácil de explicar falando do que escrevendo, mas vou tentar. Porci nos ensinou as três maneiras de escrevermos a palavra "seção". Assim, com cedilha, significa pedaço, porção. "Sessão" se refere a um espaço de tempo, um encontro. E "cessão" é o ato ou efeito de ceder.
E, mais importante ali no contexto, nenhuma delas era a secção áurea que aprenderíamos. Esta, também conhecida como proporção áurea, é uma "constante real algébrica irracional". A divisão de uma reta em dois segmentos, cuja soma dos dois segmentos dividida pela parte mais longa resulta no chamado "número de ouro", ou "número perfeito". Se esses princípios forem aplicados a um retângulo, obtemos a espiral áurea. A proporção foi criada pelo arquiteto grego Phidias, durante a projeção do Parthenon2.
E poderíamos ter parado por aí, com um exercício de "obtenha a proporção áurea nos segmentos de reta abaixo", mas não foi o que aconteceu. O exercício de fixação e prática do conceito era, nada mais, nada menos, do que uma reprodução do Parthenon.
Porci foi ensinando, passo a passo, enquanto desenhava o templo na lousa. E os alunos, cada um em sua própria folha. No fim da aula, todos tinham o desenho perfeito, cheio de proporções áureas, pronto pra levar pra casa, para a realização da segunda parte da tarefa: a pintura com lápis de cor.
Por conta da incidência da luz natural no templo, o professor nos explicou que, dependendo da hora do dia, a construção aparentava ter cores diferentes do branco. Então, foi um trabalho realmente artístico pintar aquela loucura toda e eu me recordo de ter feito uma "versão noturna", usando tons mais escuros e um céu estrelado.
Foi uma das minhas poucas notas dez nesses trabalhos mais complexos (que demandavam mais do que desenhar e calcular ângulos e medidas corretamente), uma atividade que eu lembro de ter me divertido muito enquanto fazia e ouvia as histórias do professor na classe - a proporção áurea está presente, mesmo que involuntariamente, em diversos lugares e animais na natureza, demonstrando simetria e perfeição.
(Parênteses rápidos entre parênteses: em 2005, o Dream Theater lançou seu oitavo disco, o Octavarium3, que é cheio de referências à proporção áurea nas músicas, nas artes do encarte, e em toda a sua concepção.)
Histórias, nossas histórias
Era natural que muitos dos ensinamentos do professor Porci fossem se perdendo na cabeça dos alunos com o tempo. Principalmente para aqueles que não seguiriam carreira de engenharia, arquitetura, design ou algo parecido. Eu mesmo, lembro os nomes das ferramentas, algumas das construções e só. Talvez eu nem saiba mais pegar no compasso (sorry, Beto Jamaica), mas uma coisa é certa: o jeito de ensinar, com paciência, domínio técnico e empatia, ninguém nunca esqueceu.
E, mais do que isso, a capacidade de conectar boas histórias aos trabalhos. Um storytelling executado com maestria, como mestre que ele sempre foi. Não sei se Porci ainda leciona, mas ele certamente é/foi um professor que ensinou muito mais do que desenho geométrico. Não à toa, sempre era paraninfo de alguma(s) turma(s) na colação de grau da oitava série.
Mal sabíamos, mas ele ensinava, além de desenho, conhecimentos gerais e língua portuguesa, um pouco de marketing. A "UX" na aula dele foi, sem sombra de dúvidas, a melhor de todas, mesmo antes de inventarem o que era UX. A flanela na mesa de 45º era coisa de gênio, de quem, em algum momento, compreendeu as dificuldades dos usuários e aplicou uma proposta de solução pra melhorar o esquema.
Desenho Geométrico era uma matéria que a gente não fazia ideia do que era ou pra que servia e recebia com ceticismo (porque ainda não existia a palavra ranço) na quinta série. Mas, no fim das contas, acabava por ser uma das mais queridas por todos os alunos ao final da oitava. Graças ao mestre, com carinho.
Epílogo
Criei uma playlist dedicada aos professores/mestres, Ao Mestre com Carinho. Feita por alguém (eu mesmo) que já teve o prazer de compartilhar conhecimento - e algumas boas histórias também - com alunos que buscavam aprender e/ou aprimorar o idioma inglês, entre 2008 e 2009. Um dos momentos mais legais de todos nesse meio-tempo, inclusive, foi ter recebido um presente que não foi uma maçã, mas um quadro branco, que, por ser grande demais, não conseguia usar nas aulas que dava, mas ficava na parede do meu quarto.
Feliz Dia dos Professores, com atrasinho, mas de coração!
Beijos de luz e até a próxima,
Luigi"
Objeto provavelmente inventado pelo Porci, já que o Google não o conhece, para dividir ângulos em três partes iguais. Fizemos os nossos em acetato, enquanto ele tinha um gigantesco, feito em madeira, pra usar na lousa.
Eu ouvi Octavarium até o “disco furar”, como diziam os mais antigos, e com muita atenção ao encarte, que é maravilhoso. Mais detalhes sobre todas as referências aqui, em inglês.