A droga da desobediência
E se você tivesse estudado mais matemática do que português, você continuaria sendo o mesmo você de hoje em dia?
Obedecer é um verbo transitivo indireto. Ou seja, quem obedece, obedece a alguém, ou a si próprio e/ou desobedece a alguém, ou a algum conjunto de regras.
“Você, pra fora da sala, agora”
Eu nunca fui dos alunos mais desobedientes. Pelo contrário, fui bem certinho por muito tempo. Tudo mudou, principalmente, quando cheguei lá por volta da sexta série (o que os hormônios e a adolescência não fazem com a cabeça da gente, não é mesmo?), mas, ainda assim, não era dos mais problemáticos.
É mais fácil dizer que tive alguns lapsos. Sei lá o que me veio na cabeça quando puxei o cabelo de um coleguinha de classe aos seis anos de idade pra ver a pintura de rosto que ele acabara de fazer. Também não sei porque resolvi, acompanhado de outros três meliantes, jogar um amigo no lixo, enquanto ele comia um cachorro-quente sentado na lata, na famigerada sexta série.
Já no primeiro colegial, escolhi sair de uma aula de Português de uma professora substituta (que tornou-se definitiva e muito parceira dois anos depois) depois de ela ter proclamado a frase "quem não trouxe o livro, pode sair da sala". Não dá nem pra falar que fui posto pra fora, diferentemente de dois episódios em aulas de Química, no terceiro ano. Em um deles, fazíamos uma lista de compras para um churrasco e, no outro, simplesmente rimos do RG de um dos meninos - o nome é tão grande que, mesmo abreviando quase todos os sobrenomes, a assinatura tinha duas linhas. Motivo de risadas pra gente, motivo de cartão vermelho pro professor. Pior que, naquele dia1, eu realmente prestava atenção à aula e meu protesto silencioso foi colocar uma mesa do lado de fora da sala e continuar copiando a matéria da lousa.
A química em português
Química não era o meu forte, assim como Física também não. No segundo colegial, inclusive, eu tirei o meu primeiro (e único) zero da vida, o que me levou a precisar compensar a nota no último trimestre, pra não pegar a recuperação final. Então, eu tirei o meu primeiro (e único) 10 em Física. Minha primeira recuperação foi em História, na sexta série. Eu tinha dificuldades com a História do nosso Brasilzão (fato que eu levei pra faculdade, pegando uma DP em Cultura Brasileira), mas me recuperei até que bem. Não tinha segredo, bastava estudar, estudar e estudar. Ler bastante, decorar algumas datas, saber de alguns fatos e voilà: a nota chegava. Isso em diversas matérias, como, imagino, ainda deve ser no ensino em 2021. Exceto em uma matéria: Português.
Tinha, sim, bastante decoreba envolvida pra passar de ano em língua portuguesa: conjugações verbais diferentes, análises sintáticas, substantivos coletivos, tipos de oração e por aí vai. No entanto, volta e meia, aparecia aquela que era o terror da maior parte da galera nos anos 2000 e ainda é nos anos 2020, a falar pelo Enem: a redação. Não tem como decorar nada, ainda mais se o tema não for sabido antes. Escrever redação (na escola e no Enem) só funciona se a gente leva uma bagagem junto, com o que a gente lê, ouve e fala. Escrever redação é conectar frases, transformando algumas ideias soltas em pensamentos claros pra quem vai ler. E, cá entre nós, é difícil pra caral**.
Na escola, eu tinha bastante medo das provas que tinham redação. Me dava muito bem com números2 e achava que não sabia escrever, provavelmente pelo simples fato de não ter o costume de treinar. Em algum momento ainda no ensino fundamental, uma nota máxima em uma redação me fez acender uma faísca mental: talvez eu seja bom nisso.
Alguns anos depois, uma nova oportunidade de escrever e mais uma nota máxima. A proposta era escrever um conto e eu criei uma história absurda que só lembro de ter dois personagens: o cantor Belo e o imperador Nabucodonosor3. Estávamos divididos em grupos na sala e cada grupo deveria pegar os textos de outro grupo, ler e eleger um para ser lido em voz alta. Dos textos da minha galera, o meu foi escolhido, lido pra todo mundo em alto e bom som e muitas risadas vieram, acompanhadas da cara de interrogação dos desavisados, surpresos por algo tão absurdo como era o meu conto.
Meu texto desrespeitava alguma regra imposta pela professora, mas eu realmente não me lembro qual era - provavelmente, o conto não poderia ter tanta fantasia. Ainda assim, ali obtive mais uma nota máxima e me veio uma segunda faísca mental: talvez eu seja realmente bom nisso e não precise obedecer todas as regras pra provar.
A arte de “desobedecer”
Fast forward para 2007, primeiro (e único) ano da minha primeira faculdade, curso de Letras, na Unesp, em Assis. Era uma aula sobre tipos de texto4: aforismos, contos, crônicas e por aí vai. A missão, valendo nota de 0 a 10, era escrever um conto. Ao entregar para o professor, falei: "eu escrevi uma crônica, acho que me dou melhor com esse tipo de texto". A resposta veio na semana seguinte, com uma nota 10.
Em uma aula de Estudos da Linguagem, escrevi sobre a minha revolta com essas tais regras e coloco um trecho aqui, que encontrei postado no meu antigo blog, o "Por favor, um espetinho de frango e uma coca de 500", ainda ativo no link aí. O nome veio do blog veio do pedido que eu fazia em todas as viagens Osasco-Assis durante a parada no posto de serviço da estrada. Ali, eu publicava tudo o que escrevia no meu caderno verde5.
"Normalmente escrevemos poesia quando estamos apaixonados."
E uma crônica é escrita quando? Não existe crônica de amor? Se a crônica de amor não existe, também não existe a poesia "não-de-amor" e a crônica não pode ser escrita quando estamos apaixonados.
Assim pensando, fica difícil ter criatividade e escrever com linhas livres, sem seguir padrões. Padrões, estes, que já parecem estar feitos, como dito acima e que não podem ser quebrados.
Odeio paradigmas.
(parênteses rápidos, entre parênteses: eu já questionava o tal do status quo antes de ser moda e antes de saber o que era status quo. Eu já flertava bem com desobedecer, mas no meu canto. E me diziam que eu era bom em escrever também.)
Perdi o encanto pelas Letras poucos meses depois. O texto deste trecho acima, por exemplo, nasceu em resposta a uma discussão na aula onde a poesia foi posta num pedestal. E eu, cronista que me achava, escrevi meu desabafo no papel, em vez de levantar a mão e falar na aula. Em Letras, tudo era abstrato demais, literário demais, e eu queria algo mais concreto, que me proporcionasse um pensamento mais crítico e um leque maior de temáticas possíveis. Então, larguei a Unesp, voltei de Assis pra Osasco, prestei vestibular novamente e aterrissei no jornalismo querendo, em algum momento, atuar com uma das minhas três paixões: games, música e esporte.
Em 2010, só no terceiro ano da faculdade, o "espetinho e coca" teve seu fim, depois de ter perdido consideravelmente a força em 2009, com uma frequência bem menor do que era até 2008. Os últimos textos, de temática esportiva e com uma cara mais jornalística e menos cronista, me fizeram criar um spin-off, o Rock Esporte Clube, que sobreviveu por algum tempo até entrar em hiato por tempo indefinido, talvez pelo final da faculdade e pelo começo da minha carreira profissional.
Eu não havia parado de escrever, mas meus textos mudaram de canal e de temática. Passaram a frequentar murais, intranets, jornais internos e até a serem assinados pelo presidente6 da firma.
Depois de um tempo, senti ter perdido minha identidade. Não era eu escrevendo, era o chefe. Não eram as minhas palavras, eram as dele. Era bom? Sim. Era autêntico? Sim, mas não era eu. E, assim como nas aulas da faculdade (principalmente na matéria de jornalismo impresso, com aqueles lides totalmente quadrados), era uma vida cheia de regras e, pior ainda, não eram regras minhas ou que eu queria obedecer. Não dava pra escrever crônicas sobre momentos aleatórios da vida na fala do presidente pra convenção de vendas.
Depois de muito tempo, passei a escrever algumas coisas para minhas próprias redes sociais: textões no Facebook e, mais recentemente, textinhos no LinkedIn. Falei bastante sobre política no fatídico período pré-eleitoral em 2018 e, com o tempo, fui colocando meu conteúdo em caixinhas para se adaptar aos algoritmos internéticos, até chegarmos ao agora.
O ano é 2021 e eu nunca entrei numa redação para trabalhar. E o resto é história (de carreira, que vai ser devidamente contada em outra edição, outro post, pra delírio dos RHs de plantão). E, verdade seja dita, nunca deixei de escrever. Involuntariamente, acabei sempre por investir mais do meu tempo em me aprimorar (ou, ao menos, exercitar) naquilo que sempre gostei mais de fazer, há pelo menos 14 anos - ok, me senti velho agora.
Escrever uma newsletter? Sim. Mas exclusivamente sobre marketing? Nem sempre vai ser - na real, estamos na terceira edição e eu só tô aqui, contando histórias, sem obedecer muitas regras. Taí, talvez eu seja bom nisso: desobedecer7. Só não sabia disso quando coloquei a cadeira do lado de fora da aula de Química. Ali foi só um protesto silencioso, mesmo, eu juro.
Desobedeça, sim, mas com consciência e estilo, como pede a playlist dessa semana. Mas sempre respeite as leis de trânsito, seus pais e as pessoas à sua volta, por favor. =)
Beijos de luz e até a próxima,
Luigi"
Em três anos de colegial, foram três anos dificultosos em Química. No primeiro, o professor não fazia muita questão de dar aula. No segundo, o professor era bom, empenhado, mas eu já não sabia nada porque não tinha aprendido no primeiro. No terceiro, um desastre completo: desinteresse do professor, perseguição com a nossa panelinha e (muito) desinteresse da minha parte.
Entrei no Kumon aos seis anos de idade e parei aos 14, quando faltavam cinco estágios para terminar (já havia feito 10) e as lições já tinham mais letras do que números. Malditos exercícios de fatoração. Por outro lado, fui até o final no módulo de língua portuguesa e tenho um glorioso troféu que comprova isso, até.
Nabucodonosor, além de imperador na antiga Babilônia, foi meu primeiro nickname no Counter Strike, na febre das lan houses, lá por volta dos anos 2003/04. Que época maneira.
Certamente existe um nome um pouco mais técnico pra isso e fica aqui o desafio pra você me ajudar a descobrir.
Se você só chegou aqui agora, cito a origem do meu caderno verde na primeira edição da news. Aqui ó.
A arte do ghost-writing: escrever como se fosse alguém e esse alguém só tem o trabalho de ler, aprovar e assinar o texto. Ou te mandar fazer tudo de novo.
Tô com o livro Desobedecer, do Maurício Benvenutti no gatilho há um tempo pra ler e, quem sabe, ele me leve a escrever um "ode ao desobedecimento" parte 2 no futuro.